Depois de sua fuga, Shay é cuidado por um casal idoso que são Templários. Shay termina sendo recrutado por eles, e luta contra os seus antigos irmãos Assassinos. Normalmente, nos jogos de Assassin's Creed, a gente é levado a achar que os Templários são os vilões porque são contra a liberdade, enquanto os Assassinos são os heróis porque lutam por ela. Mas Rogue quebra essa perspectiva, explorando os dois lados da moeda e mostrando as falhas no sistema de crenças dos Assassinos.
Os Assassinos parecem nobres, claro, combatendo a corrupção e outros vilões da história. Mas as coisas fica meio confuso quando você pensa no lema deles: "Nada é verdadeiro. Tudo é permitido." Considerando os eventos do Rogue, essa atitude de liberdade absoluta começa a ficar questionável.
Dá pra entender melhor essa luta se a gente pensar na liberdade negativa e positiva:
- Liberdade negativa: é a ausência de impedimentos externos ou interferências na ação de uma pessoa. É o conceito de liberdade que se concentra na ausência de restrições externas, permitindo que as pessoas ajam sem interferência coercitiva. Em resumo, é a liberdade de não ser impedido por outros ao tomar decisões ou seguir escolhas individuais. Pense nisso como a liberdade de ser deixado em paz. Por exemplo, ninguém interfere na sua escolha de música ou no que você faz, desde que não prejudique ninguém.
- A liberdade positiva: refere-se à capacidade e oportunidade de agir de acordo com o próprio livre arbítrio, com acesso a recursos e condições que possibilitam escolhas significativas na vida. Agora, isso é mais sobre ter a chance de fazer coisas. Imagine ter a oportunidade de escolher a música que você quer ouvir, não apenas porque ninguém está te impedindo, mas porque você tem acesso a diferentes estilos de música e pode explorar suas preferências.
Em resumo, liberdade negativa é como ter espaço pessoal, enquanto liberdade positiva é ter oportunidades para fazer coisas que você valoriza. Ambas são importantes para uma sensação completa de liberdade na vida. Mas o problema é que a liberdade ilimitada pode bater de frente com os direitos dos outros.
Os Templários, pelo contrário, negam a liberdade completamente. Eles não acreditam na liberdade positiva, de as pessoas fazerem suas próprias escolhas, nem na liberdade negativa, de serem livres de controle autoritário. Pra eles, a liberdade de uma pessoa acaba prejudicando a de outra, então ela deve ser controlada.
O filósofo Isaiah Berlin destaca algo interessante: a autodeterminação associada à liberdade positiva pode trazer consequências perigosas. Ele argumenta que, ao buscar essa liberdade, grupos podem tentar impor um destino coletivo, acreditando saber o que é melhor para todos. Como Berlin alerta, ‘se alguém pode determinar o que eu devo ser, ele também pode determinar o que eu sou’, justificando a coerção em nome de uma suposta 'verdadeira liberdade'. Isso foi evidente em momentos históricos na Europa, como o nacionalismo do século XIX, onde movimentos como a unificação da Alemanha e da Itália buscavam autodeterminação nacional, mas muitas vezes resultaram em regimes autoritários, sacrificando as liberdades individuais em nome da unidade.
Outro exemplo foi a Revolução Francesa, quando, após a queda da monarquia, a busca pela liberdade coletiva culminou no Terror Jacobino, uma era de perseguição e repressão em nome da 'verdadeira liberdade'. Berlin também chamava atenção para os regimes totalitários do século XX, como o Nazismo e o Comunismo, onde tanto Hitler quanto Stalin usaram a ideia de liberdade positiva para justificar genocídios e repressão política, levando a uma negação brutal das liberdades individuais. Além disso, o imperialismo europeu, que justificava a dominação de povos colonizados em nome de ‘libertá-los’, também se encaixa nesse padrão, mostrando como a busca pela liberdade coletiva pode facilmente se transformar em opressão. Como Berlin alerta, ‘na busca por moldar os outros, podemos acabar negando a eles sua própria liberdade’.
Esse fenômeno também se reflete no Risorgimento italiano, um movimento profundamente ligado à aspiração de autodeterminação. Durante esse período, figuras como Giuseppe Mazzini e Giuseppe Garibaldi desempenharam papéis cruciais na luta pela unificação da Itália. O movimento buscava livrar-se do domínio estrangeiro e estabelecer uma nação unificada e independente, com um governo que refletisse os interesses e a identidade nacionais. Assim, o Risorgimento exemplifica como a busca pela liberdade coletiva e pela autodeterminação pode ser intensamente ligada ao desejo de moldar o futuro de uma nação, mas também como essa busca pode, em certos contextos, ignorar as liberdades individuais em nome do bem maior.
Obviamente, não estamos comparando Assassinos com nazistas - são tão diferentes quanto Mozart e Fred Durst. Mas os Assassinos, em nome da liberdade para todos, parecem dispostos a sacrificar a liberdade de alguns. Se todos têm a liberdade de fazer o que bem entendem, e os Assassinos não têm problema com terremotos matando milhares, será que a liberdade absoluta é realmente o bem supremo?
Os Templários parecem bater de frente com a liberdade positiva, onde as pessoas são seus próprios chefes, então ativamente tentam suprimi-la em prol de um mundo melhor. E, surpreendentemente, Rogue mostra que eles não estão tão errados quanto se pensa.
Paradoxalmente, certos direitos e liberdades podem ser aprimorados com mão pesada do governo ou dos Templários. Ao limitar a liberdade de alguém para evitar escravizar outro, a lei pode estabelecer uma versão melhor de liberdade que não se baseia na propriedade de outros humanos. Essa questão também aparece em outros jogos de Assassin's Creed , como Black Flag, onde os Templários britânicos reprimem os piratas que você controla em nome de mares mais seguros e liberdade para as vítimas em potencial dos piratas.
Os Templários acreditam que sabem o que é melhor e que a ordem pode ser alcançada por meio de orientação e regras, mas não é exatamente uma ideologia perfeita. Nesse contexto, existe um grande perigo associado ao controle total de indivíduos em nome do 'bem maior', uma ideia que nos remete ao pesadelo distópico de 'Big Brother', como explorado na obra '1984' de George Orwell.
Este conceito alerta para os riscos de conceder poder absoluto a uma autoridade central em nome de um propósito aparentemente benevolente. O 'Big Brother' destaca como a busca pelo 'bem maior' pode resultar em uma sociedade totalitária, onde a liberdade individual é sacrificada em favor de um controle excessivo do governo. Essa preocupação ressoa nas discussões filosóficas sobre governança, enfatizando a importância de equilibrar a autoridade com a preservação dos direitos e liberdades individuais.
O que torna Rogue único é que Shay se afasta das estruturas de crença dogmáticas que caracterizam os protagonistas dos jogos anteriores e abraça uma escolha moral racionalmente informada. Mas será que Shay fez a escolha certa? Para descobrir, precisamos da ajuda de um dos grandes nomes do Iluminismo europeu: Immanuel Kant. Durante o Iluminismo, Kant formulou uma maneira de fundamentar a moralidade na razão, conhecida como 'Imperativo Categórico'. Ele estabelece três regras principais:
1. Universalidade das Ações: Age e pensa nas suas ações como se elas fossem regras que todos devem seguir, ao mesmo tempo em que desejaria que se tornassem uma lei universal. Isso significa que, ao tomar uma decisão, você deve considerar se seria aceitável que todos seguissem essa mesma ação em todas as situações, sem contradições.
2. Tratamento Digno das Pessoas: Tratar as pessoas sempre como seres valiosos, não apenas como meios para alcançar seus próprios objetivos. Respeite a dignidade e os direitos delas. Isso destaca a importância de reconhecer cada pessoa como um fim em si mesma e não apenas como um instrumento para atingir seus próprios fins.
3. Autonomia e Agência Universal: Aja como se sua vontade pudesse criar regras para todos seguirem. Imagine que suas decisões fossem leis que se aplicam a todos. Se todos pudessem seguir essas leis sem problemas, sua ação é ética. Isso sugere que devemos agir de acordo com o princípio de que nossas escolhas devem ser universais e respeitar a autonomia de todos.
Agora, de acordo com a ideia de Kant, podemos analisar a escolha de Shay em relação aos Assassinos. Shay desertou porque acredita que, ao causar um terremoto e justificá-lo como parte de sua "responsabilidade", os Assassinos cometeram uma grave injustiça. Esse ato viola a primeira formulação de Kant, pois implica matar milhares para atingir seus próprios fins, o que nunca poderia ser um ato ético universal.
Além disso, os Assassinos afirmam que essas vidas são sacrifícios aceitáveis para seu objetivo maior, o que também viola o segundo princípio de Kant. Usar pessoas como meio para alcançar um fim é um erro moral significativo, pois não respeita a dignidade e a autonomia de cada indivíduo.
Por fim, a crença dos Assassinos em total liberdade, que os leva a destruir as casas e as vidas autônomas das pessoas, contraria a terceira formulação de Kant. Ao ignorar a agência e os direitos das pessoas, eles violam a noção de que as ações devem ser compatíveis com uma ordem universal que respeite a liberdade e a dignidade de todos.
Portanto, de acordo com a filosofia de Kant, a escolha de Shay está mais alinhada com os princípios éticos, enquanto os Assassinos falham em cumprir esses critérios morais fundamentais.
O que podemos aprender da decisão de Shay?
Que lutar pela liberdade não é tão simples. Ao buscar sua própria liberdade, os Assassinos destruíram as liberdades dos outros. Mas ao rejeitar a filosofia doutrinada de "nada é verdadeiro, tudo é permitido", Shay pode ser um dos poucos heróis éticos da franquia Assassin’s Creed. Infelizmente para Shay, os Templários não são exatamente cidadãos modelo também. Em nome de regular a liberdade para o bem maior, os Templários fazem muitas coisas deploráveis. Os vemos ajudando as pessoas locais em vários lugares, e impedindo os Assassinos de cometer o que equivale a um crime de guerra. Mas também os vemos mentindo, mutilando e matando em nome de seu próprio credo.
No final, a mesma sensação de dubiedade moral segue os Templários tanto quanto os Assassinos, com ambos contradizendo o Imperativo de Kant ao usar as pessoas como meio para seus próprios fins e matar aqueles que ficam em seu caminho. A exploração mais matizada de Rogue sobre liberdade, bem e mal é uma adição bem-vinda à série. A decisão de Shay de trair os Assassinos coloca as filosofias de ambas as facções sob escrutínio e faz o jogador ver cada uma sob uma luz totalmente nova.
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